O Alfarrabista

O Alfarrabista

Religião e Política: um diálogo sobre o espírito da Reforma Protestante (em 29/10/2016).

Parr,Catherinetomb

(Diálogo entre a Rainha Catherine Parr e entre o Mestre Hugh Latimer  –  Retirado do episódio 7 – “Sixth and Final Wife” da temporada 4 do seriado “The Tudors”).

RAINHA CATHERINE: Vossa Graça!

MESTRE LATIMER: Infelizmente Senhora não mereço mais tal tratamento. Tive minha diocese retirada de mim pelo Bispo Gardiner.

RAINHA CATHERINE: Eu sei! Eu sei as circunstâncias disso. Porém, pretendo nomeá-lo capelão de meu lar.

MESTRE LATIMER: Tem absoluta certeza Senhora? Deve conhecer a minha reputação…

RAINHA CATHERINE: Sua reputação Mestre Latimer é a de um homem dos evangelhos e a de um verdadeiro cristão. Por exemplo, acha que é um coisa ruim todos na Inglaterra poderem ler a Bíblia por conta própria?

MESTRE LATIMER: Não! Ao contrário! Acredito que seja algo vital, pois sem a Palavra de Deus, os analfabetos permanecem confusos e sem a graça.

RAINHA CATHERINE: Mesmo que alguns digam que a leitura da Bíblia leva à heresia?

MESTRE LATIMER: Se dizem isso, estão perversamente culpando a Sagrada Palavra de Deus pelas faltas dos homens!

RAINHA CATHERINE: Tem razão! As pessoas se negam a comer por verem outras comerem em excesso? Ou evitam usar o fogo por terem visto a casa do vizinho incendiar-se? Que ignorância Mestre Latimer, imputar a Deus a falta dos homens!

MESTRE LATIMER: Senhora, se ainda pretende fazê-lo ficarei contente em ser seu capelão.

RAINHAN CATHERINE: Eu lhe agradeço. Quero lhe pedir um favor. Não revele seus verdadeiros pensamentos a Lady Mary [filha mais velha de Henrique VIII], pois por nada desse mundo ela deixará de ser leal à fé de sua mãe [Catarina de Aragão – católica] e eu a respeito por isso.

MESTRE LATIMER: Senhora, pode estar certa de que agirei com toda discrição em relação aos filhos de Sua Majestade e a todos.

RAINHA CATHERINE: Obrigada!

[MESTRE LATIMER saúda a RAINHA CATHERINE e se retira, enquanto ANNE, a irmã da RAINHA CATHERINE se aproxima e se dirige a ela].

ANNE: Irmã, tem certeza que pode confiar na discrição de Mestre Latimer? Sei que não devia dizer isso a Vossa Majestade, mas temo pelo seu comprometimento.

RAINHA CATHERINE: Devo fingir ser a covarde? Anne, você sabe que nunca quis me casar com o Rei. Mas já que me casei, devo ao menos usar a influência que agora possuo em prol da causa que acredito com todo o meu coração: A causa da Reforma. Assim, ao menos poderei falar com o meu Deus com a consciência limpa e a alma tranquila. Por favor, diga que me entende Anne. Por favor…

ANNE: [faz um sinal de positivo com a cabeça].

O diálogo acima, retirado de um seriado veiculado pelo canal Showtime (2007-2010), não pode ser considerado “histórico”, no sentido de ter realmente acontecido, mas pode ser considerado “histórico” no sentido clássico, tal como ao estilo do historiador grego Tucídides que, grosso modo, colocava nas bocas de personagens históricos, discursos que refletiam o que ele, Tucídides, interpretando os fatos, achava que era o mais acurado e apropriado.

Pois bem, nesse sentido como discurso, o diálogo é extremamente válido e interessante para entendermos uma variada gama de fluxos e refluxos em que estamos submetidos e nos submetendo.

Antes, façamos uma breve contextualização histórica:

CATHERINE PARR (1512-1548) foi a última esposa do Rei Henrique VIII. Era simpática às ideias da Reforma Protestante em terras inglesas e de certa forma patrocinou o movimento, tendo elaborado inclusive duas obras interessantes, “Prayers or Meditations” (1545) e “The Lamentation of a Sinner” após a morte de Henrique VIII (http://tudorhistory.org/parr/).

HUGHE LATIMER (c.1487-1555) foi um reformador inglês, fellow do Clare College de Cambridge. Era um pregador profícuo e uma de suas bandeiras era a tradução da Bíblia para a língua inglesa para que ela pudesse ter a leitura acessível a todos os ingleses de modo a quebrar o monopólio da “interpretação” dos textos sagrados mantido pelo clero.

Era uma iniciativa arriscada que o levou a uma série de confrontos, até que se tornou Bispo de Worcester em 1535, posição da qual renunciou em protesto pelo fato do Rei Henrique VIII não ter avançado com a Reforma na Inglaterra da maneira que ele esperava.

Posteriormente, se tornou capelão do Rei Henrique VIII por influência da Rainha Catharine Parr.

Após a morte de Henrique VIII e com a Ascensão de Mary I, a sanguinária, ao poder, vai ser acusado e condenado a fogueira por heresia. Vai ficar conhecido como um dos “mártires de Oxford” juntamente com Nicholas Ridley e Thomas Cranmer.

Sua obra é muito importante não só para entender o pensamento reformador inglês, mas para entender o contexto social e político da Inglaterra de seu tempo, se destacando seus “Sermons of the Card” (1529), “Preached to the Convocation” (1536), “Sermons Preached before King Edward VI” (1549-50), “Sermons on the Lord ´s Prayer (1552) (cf. http://www.luminarium.org/renlit/latimerbib.htm).

O que me chama atenção nesse diálogo é a sua atualidade e a percepção que as mesmas questões que os atingiam então ainda nos atingem em cheio.

A questão essencial do diálogo, que pode ser resumida de maneira muito superficial, como sendo: podemos todos ter o direito ao acesso a um texto sagrado, lê-lo, interpretá-lo, tirar as nossas conclusões, ou devemos deixar essa tarefa para os “profissionais”? Podemos ainda, adicionar a essa uma outra questão: A serviço de quem estão os intérpretes “profissionais” dos cânones sagrados?

Como protestante, me atenho basicamente ao mundo protestante, que se tornando “evangélico”, há muito deixou de “protestar” e onde, ao contrário, vemos avolumar-se um movimento retrógrado, a partir do qual  as pessoas têm aberto mão – por pura alienação e preguiça – da prerrogativa de ter, antes que o direito, o dever de examinar os textos sagrados por elas mesmas, para desenvolverem as suas consciências, em prol de interpretações “autorizadas” por parte de “hierarcas eclesiásticos” auto impostos, que não se importam com nada além de seus próprios umbigos e gargantas largas, justamente contra os quais homens como Latimer lutaram  durante séculos, literalmente até o sacrifício supremo, para nos alertar e livrar.

É um retrocesso ver estruturas eclesiásticas intrincadas e obscuras se desenvolvendo a partir da simplicidade tranquila que propõe o Mensageiro e ver “representantes”, “porta-vozes” dele, serem levantados e tomando para si a sua voz e a vez de toda uma comunidade, ao ponto de influenciarem com suas opiniões e agendas deletérias não só a vida “espiritual” de milhões de pessoas, mas, cada vez mais, seu destino enquanto comunidade, povo e cidadãos.

O templo sempre foi vizinho do palácio. O templo sempre serviu de depósito para o tesouro dos ricos e poderosos. Nos esquecemos disso, mesmo em tempos que considerávamos, em nossa inocência positivista imbecilóide, de ver sacramentada a falácia da laicidade do Estado.

A religião nunca deixou de ser fundamental para a política. A política nunca deixou de ser fundamental para a religião. E ambas, enquanto “instituições”, nunca deixaram de ser fundamentais para o domínio das massas ignorantes.

Assim foi e assim será.

A questão é: como matar a hidra que vem se formando no Brasil a partir da união dessas duas forças tão retrógradas e reacionárias?

Encerro, provisoriamente, repetindo trechos do diálogo acima que me chamaram a atenção:

“…. Acha que é um coisa ruim todos na Inglaterra [poderíamos dizer Brasil] poderem ler a Bíblia [poderíamos dizer Constituição?] por conta própria?

– Não! Ao contrário! Acredito que seja algo vital, pois sem a Palavra de Deus, os analfabetos permanecem confusos e sem a graça.

– Mesmo que alguns digam que a leitura da Bíblia leva à heresia?

Se dizem isso, estão perversamente culpando a Sagrada Palavra de Deus pelas faltas dos homens!

–  tem razão! As pessoas se negam a comer por verem outras comerem em excesso? Ou evitam usar o fogo por terem visto a casa do vizinho incendiar-se? Que ignorância, imputar a Deus a falta dos homens!

Como diz Jurgen Moltmann: “Deus é um espaço amplo”. Não é isso que estamos vendo acontecer, ao contrário, o aperto é progressivo para onde quer que a gente se movimente.

Não é momento de parar de ler. Não é o momento de parar de ensinar a ler. Não é momento de parar de criticar ou de libertar nossas consciências. Ao contrário, é o momento de começar a fazer isso mais do que nunca, ou então esse futuro sombrio que nos paira sobrevirá inexoravelmente com todo o seu peso.

Quem tiver ouvidos ouça…

(29/10/16)

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