O Alfarrabista

O Alfarrabista

O dilema do Alfarabista (em 16/02/2017).

Cincinnatis cavernous old main library

Um alfarrabista seria, por definição, uma pessoa interessada por livros antigos, empoeirados, esquecidos. Portanto, um alfarrabista que se preze costuma ter seus olhos mais voltados para o passado que para o presente.

Normalmente, seus melhores amigos, ou na pior das hipóteses, interlocutores, são homens de outros tempos, de outros mundos, que falavam, pensavam e escreviam em línguas, em outras escritas que ninguém mais fala ou entende. Homens mortos. Um bom alfarrabista não pode ter medo dos mortos, antes se sente à vontade com eles.

Isso torna o alfarrabista, aos olhos alheios, um sujeito estranho, tal qual um necromante ou como um ajuntador de papeis velhos, entusiasta de ambientes empoeirados e escuros, aficionado por cheiro de papel e mofo. Um sujeito que ensimesmado em seu diletantismo quase antiquário coleciona “anacronismos” e busca deliberadamente se apartar da “vida real”.

Conheço poucos alfarrabistas. Isso talvez pode ser explicado porque o verdadeiro deleite de um membro dessa casta deva ser o isolamento em meio a seus tesouros de papel amarelado e embolorado que ninguém mais além entende ou se importa. Presume-se, e explica-se por isso o pouco intercâmbio com os demais seres humanos, não vocacionados como ele, com os quais se vê contrariado a compartilhar a contemporaneidade.

Assim, como um guardião de tesouros, o alfarrabista costuma não querer dividir o que tem e o que sabe. Não deixa de ser um egoísta – Egoísmo talvez seja demais – Um alfarrabista, é na verdade, um indivíduo zeloso, ciumento mesmo, e desconfiado.

Sabe que a maioria dos mortais vivos sequer entendem o valor de sua vocação e, portanto, jamais vão entender o seu chamado. Se sempre foi assim, imagine o que se passa nos dias de hoje, onde tudo tem prazo de validade. Um tal de “para quê?”, um tal de “por quê?” que é superado liquidamente por um novo modelo, uma nova edição ou qualquer outra novidade, ou modinha que nunca falta, que nunca tarda.

Enquanto isso, o alfarrabista é avesso a “novidades”. É avesso à liquidez do tempo e das coisas, dado que é, por definição, mais apegado ao permanente que ao efêmero.

Mas aqui se impõe o paradoxo – E como a vida é paradoxal!

Apesar de ter a alma e o coração, intrinsecamente ligados ao passado e de ter, como já mencionei, seus amigos e interlocutores mais caros entre homens mortos, vez por outra – muito mais do que gostaria – o alfarrabista, visto que está vivo, está fadado a fazer incursões na vida do seu tempo. Assim, olhando ao redor, constata estupefato que, se o formato das coisas mudam completamente em velocidade exponencial, o seu conteúdo continua o mesmo, o que o faz lembrar fatalmente daquela máxima de um outro grande alfarrabista (talvez o maior de todos) segundo o qual “Não há nada novo sob o sol”.

Então, de repente, nada mais que de repente, muito a contragosto, em uma sinestésica profanação do espaço-tempo, do tempo e do espaço, o alfarrabista se vê arrastado da ágora de seu gabinete escuro, entulhado e empoeirado para a esfera pública virtuo-real, tragado do passado para o presente, por um buraco de minhoca e se vê tratando dos assuntos “banais” do hoje, perplexo por encontrar nada mais do que interessantes novidades velhas em tudo o que observa.

Eis o dilema e a sina do alfarrabista nesses tempos “pós-modernos”, o passado que insiste em penetrar e satirizar o presente, que ruborizado insiste em escamoteadamente repetir o passado.

Eis e então aqui, com o que eu, um pobre pretendente a herdeiro dessa tradição, me deparo.

E não sei, se olho para o presente ou se fico com o passado…

(Em 16-02-2017)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *