O Alfarrabista

O Alfarrabista

A nossa crise é a crise do politicamente correto (em 21/03/2016).

O turbilhão que envolve o Brasil hoje é fruto de ventos semeados há pelo menos duas décadas e segue uma tendência mundial. A recente radicalização tupiniquim, portanto, não vem de hoje e não é algo isolado. Faz parte de um movimento que pode ser observado no mundo todo.

O que parece, é que estamos diante do esgotamento daquilo que se convencionou chamar “politicamente correto”.

Os inventores dessa expressão têm tentado moldar (formatar seria mais preciso) o comportamento das pessoas e, para isso, tentam incutir em suas cabeças uma visão maniqueísta daquilo que é “certo” ou “errado”, daquilo que se pode ou não se pode falar ou até mesmo do que se pode ou não se pode pensar.

Poderíamos definir de maneira bem simples, que esse pensamento politicamente correto poderia se tratar de uma “censura do bem”. Uma maneira de tentar condicionar as pessoas a serem boas ou pelo menos a se comportarem bem.

A tentativa é malsucedida porque se baseia em mecanismos contrários à nossa natureza. O fato é que o ser humano pode até ser político, mas não costuma ser correto – não nos termos que a expressão pretende – e que implica em sempre assumir posições neutras e de não ofensa ou confrontação diante de algo que não considera “certo”, que não concorde ou que não faça parte de sua realidade.

O ser humano tem uma dificuldade ancestral em lidar e em aceitar o que é diferente, em aceitar o outro. Não reconhecer isso seria uma idiotice e jogar pelo menos 5 mil anos de história na lata do lixo.

Tentar moldar consciências com o que pode ou não se pode dizer não passa de uma tentativa behaviorista forçada de nos condicionar. Muitos tentaram. Até se consegue enjaular as bestas feras que somos, mas não para sempre (na verdade não por muito tempo).

A experiência demonstra que em um dado momento essa estabilidade ou mordaça branca – que não é real – não se sustenta e a reação radical que choca é contrária ao que pretende, forte e até desproporcional, simplesmente porque está reprimida há tanto tempo que ao menor sinal esse nosso “eu” formatado rapidamente é suplantado pelo “eu’” real – ou seja – pelo que realmente pensamos.

O mais trágico de tudo isso é que estamos há tanto tempo sem saber como lidar de fato, tanto com nossas idiossincrasias e como com as dos outros, que quando nos deparamos com elas entramos no modo mais ancestral de nossa espécie: o de sobrevivência a uma ameaça.

Daí o partidarismo, a negação, o confronto e a tentativa de eliminação do diferente, do outro.

É isso que está acontecendo hoje. É isso que acontece no Brasil. Há realmente coxinhas, há realmente mortadelas, há racistas (negros e brancos), há homofóbicos (gays e héteros), há fundamentalistas (religioso e ateus) e todas as suas respectivas contrapartes.

É um fato. Estamos vendo manifestações disso não só aqui, mas mundo a fora. Negar isso seria trágico, pois se contra fatos não existem argumentos, mesmo que haja argumentos, serão desmentidos pela realidade, que nesses casos costuma ser violentamente real.

Isso explica em grande medida a ascensão de um tipo como Donald Trump nos EUA, por exemplo. Ele simplesmente sucede porque está falando o que está lá no fundo da cabeça de um monte de gente desde sempre, mas que estavam impedidos de falar ou esquecido nos recônditos de suas almas.

Veja, não estou entrando em juízo de valor aqui quanto ao que penso do discurso de Trump, que por sinal – para constar – discordo frontalmente.

Entretanto, aqui, só me atenho a constatar que o seu discurso materializa uma forma de pensar que sempre pairou por lá e que encontra eco porque é um discurso vivo e cheio de sentido para uma grande parcela do público que ouve.

Aqui no Brasil vemos o mesmo acontecer.

Os discursos polarizados acabam por revelar ecos das questões que nunca deixaram de estar no fundo das nossas cabeças. Somos uma democracia infantil em uma história republicana controlada por oligarquias e onde os golpes sempre foi o modus operandi para se ascender ao poder.

Vejamos. Em um período brevíssimo de nossa história: Getúlio Vargas foi ditador, foi derrubado, foi eleito, foi derrubado (o suicídio lhe foi uma “saída honrosa”). JK lutou contra o golpe durante todo seu governo, Jânio Quadros, renunciou diante de “forças ocultas”, Jango foi deposto, a ditadura militar se instalou, veio a redemocratização, Tancredo morreu na véspera da posse, Sarney governou com uma espada sobre sua cabeça, Collor sofreu impeachment, FHC governou também sob ameaças, Lula teve que governar no modo “paz e amor” e fazendo acordos. Dilma, continuação de Lula, agora está indo ladeira abaixo.

É fácil notar que podemos não se saber exatamente “quem são” essas forças, mas pelo padrão, podemos perceber que os interesses em jogo são os mesmos de sempre e polarizados por definição pelos mesmos atores de sempre.

Precisamos entender, como brasileiros que ainda não nos superamos processos terríveis de nossa história que parecem sepultadas, mas não estão.

Ainda não superamos o espírito de colônia, em que um grupo agia de acordo com os interesses de uma metrópole, não adiantou nada ser um emergente ou BRIC para se livrar desse ranço.

Não nos recuperamos dos efeitos da escravidão, por mais políticas afirmativas que implementemos, afinal o racismo está aí, mais forte do que nunca, bem como o preconceito e todos os outros “ismos” e “fobias” subprodutos dela.

Ser politicamente correto é fugir de todo e qualquer debate que toque em feridas que ainda estão longe de cicatrizar. São questões vivas e que estão por aqui pairando no ar.

É isso que estamos vivendo e enquanto tentamos nos formatar fingindo que pensamos igual, nos convencemos que somos civilizados e de repente nos vemos espancado um garoto de 17 anos na rua porque simplesmente manifestou sua opinião contrária.

Pulsões reprimidas geram compulsões. Compulsões costumam se manifestar incontroláveis. Estamos em meio a um surto compulsivo. Estamos neuróticos. É preciso fazer alguma coisa.

O que precisamos é de uma boa dose de realpolitik. Precisamos olhar as questões que nos assolam de frente para resolvê-las, pois, ao contrário dos que pregam os postulados do politicamente correto, há coisas que são aceitáveis e há coisas que não são.

Essas noções, por sua vez, vão variar de acordo com o ponto de vista do observador, que necessariamente vai ser formado a partir de onde ele está colocado no diagrama dos acontecimentos.

Portanto, para começar a resolver essas questões, precisaremos conviver com as diferenças de verdade, não com essa neutralidade fabricada, enquanto que na realidade sempre estivemos diante de noções de mundo e opiniões muitas vezes diametralmente opostas.

Precisamos reconhecer que é necessário reaprender a expressar o que pensamos do jeito que realmente pensamos, sem meias palavras e – fundamental –  ouvir o outro lado da história. A única regra que deve ser seguida nesse diálogo deve ser a da civilidade, que é mediada e garantida pela lei segundo o Estado democrático de direito.

Precisamos cobrar que medidas justas e equilibradas sejam tomadas diante de todos os desmandos e distorções e parar de achar que somos iguais, pois não somos. Esse exercício é que gera o diálogo verdadeiro e que refreia o radicalismo.

É preciso alcançar o acordo apesar e a partir das diferenças – aqui se estabelece o diálogo – e isso é possível simplesmente pela aceitação de que não somos neutros e somos diferentes e que se parecemos que somos, isso significa simplesmente que estamos anestesiados.

Estamos hoje no Brasil, e no mundo, diante de um jogo de soma zero. E soluções em que um lado ganha e outro perde nunca são as melhores soluções, simplesmente porque são provisórias e por mais que pareçam durar, represam, mas não conseguem deter o refluxo delas mesmas.

Vivemos em um mundo de verdade. Precisamos nos reconectar com ela já. Sem um choque de realidade não iremos a lugar nenhum.

(Em 21-03-16)

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