As escolhas e os caminhos (13/12/2023)
Existem pontos de inflexão na vida da gente. A questão é que normalmente é muito difícil para a maioria de nós entender que certo evento seja um desses pontos de inflexão. Como o tempo e com a experiência costuma a ser mais fácil percebê-los e até criá-los, mas parece que na maior parte do tempo e para a maioria das pessoas não.
Desde 1995, quando minha filha nasceu eu comecei a dar aulas particulares de matemática para adolescentes que estavam no ensino médio e com problemas com a disciplina como forma de ganhar algum dinheiro. O dinheiro era muito pouco, mas era o que havia. As aulas também eram um momento que me ajudavam um pouco a aliviar o peso da realidade.
Um dos alunos, do qual infelizmente esqueço o nome agora, estava numa situação difícil com o risco de perder o ano por causa das notas de matemática. O nome do seu pai eu me lembro, era Fernando. Um tipo muito simpático e agradável. Eu ajudei o seu filho o melhor que eu pude, e ao final o menino passou de ano, para surpresa de todos, até dos pais. Eu não, eu sabia que ele ia passar.
Acho que foi o momento que eu entendi que conseguia tirar das pessoas o que havia de melhor mesmo em circunstâncias difíceis. Talvez por empatia, afinal eu também estava passando por uma situação complexa da qual eu não conseguia encontrar saída e sem muita ajuda.
Ficaram todos muito gratos e como acontece todos os anos os alunos desaparecem no período de férias e só reaparecem no fim do ano seguinte quando estão perigando reprovar novamente.
Em 1997 eu estava numa situação bem indefinida na vida, bem desconfortável mesmo. Aqueles momentos em que a vida da pessoa está toda desarrumada. Tudo fora do lugar. Eu tinha 20 anos, estava no terceiro ano Economia na Universidade, tinha uma filha de 2 anos de idade, eu e minha companheira e mãe da minha filha não estávamos morando juntos, coisa que queríamos. Estávamos morando cada um nas casas dos nossos pais respectivamente, em cidades diferentes. Eu não conseguia encontrar um emprego ou um estágio que me permitisse me sustentar a mim nem prover as mais mínimas necessidades materiais da minha filha e companheira, muitas vezes nem mesmo para poder visitá-las.
Até que um belo dia o Fernando me chamou para ir à sua casa. Era outubro, portanto pensei: Bom o filho dele deve estar precisando de aulas de matemática. Fui até sua casa no horário marcado e de fato o menino precisava de reforço em matemática, mas sua situação não era crítica como no ano anterior.
Foi aí que o Fernando me perguntou: Você está trabalhando?
Eu respondi meio embaraçado: Não, não estou não.
Ele então me entregou um papelzinho com um endereço e um horário e me disse: Olha só, eu trabalho numa empresa de importação de polido têxtil e interajo muito com o pessoal do Departamento de Câmbio desse banco. Sei que você está precisando e que você tem muito potencial, por isso tomei a liberdade de marcar uma entrevista para você lá. Eles estão precisando de alguém. Aparece lá, se você quiser, é claro.
Eu respondi agradecido, mas sem entender muito bem do que se tratava. Era uma segunda feira e a entrevista estava marcada para a quarta feira às 10 da manhã na agência central desse bando no centro da minha cidade natal.
E aqui há uma daquelas histórias dentro da história que nos ensinam coisas para o resto da vida.
No dia em que a entrevista estava marcada, havia uma prova parcial de uma disciplina muito importante na Universidade. Confesso que fiquei em dúvida por um instante. Mas, a oportunidade de um estágio o que fosse que me permitisse ganhar mais era prioridade. Então tomei a decisão de conversar com o professor. Fui até a sua sala depois da aula onde ele recebia os alunos com a intenção de explicá-lo a situação como uma tentativa bem improvável de fazê-lo me aplicar a prova em outro horário ou substituí-la por algum outro tipo de avaliação acadêmica.
Expliquei a situação enquanto ele me olhava calmamente.
Quando terminei ele me perguntou de maneira gentil, mas direta: Essa entrevista é muito importante para você?
Ao que, claramente respondi que sim.
Então ele me disse calmamente e com um leve sorriso no rosto: Então falte a prova!
Ao que eu reagi: Mas o senhor não poderia me aplicar a prova em outro dia ou horário ou me passar um trabalho?
Ao que ele respondeu: Não posso, você sabe que é contra as regras do Departamento Acadêmico.
Então perguntei a ele algo que estava mais para um pensamento em voz alta: Então como fica? E ele respondeu: Não fica. Você tira zero. Mas a decisão é sua, você precisa saber o que é mais importante para você.
Tirar um zero em uma prova parcial para um estudante de Federal significa estar automaticamente em prova final e ter um rebaixamento no seu coeficiente acadêmico, que era algo que eu mantinha alto com muito cuidado e esforço visando no futuro alguma vaga em um dos programas de iniciação científica ou de pós-graduação da Universidade como possível acesso à carreira acadêmica, que era o que me passava pela cabeça então como ideia de futuro.
Diante da resolução do professor e antecipando uma “tragédia” eu apenas perguntei: posso continuar assistindo suas aulas então professor?
Ao que ele respondeu com um sorriso no rosto: Claro! Você ainda tem mais uma parcial e a prova final.
Anos depois entendi que essa foi a primeira reunião de verdade que tinha tido na minha vida.
Ali tinha entrado um ainda adolescente de 20 anos e saído um homem de 20 anos. Nunca tinha sido confrontado com a realidade da dureza e necessidade das escolhas de uma maneira tão direta e didática.
Escolhi ir à entrevista. Fui até lá, sem muita informação sobre onde ou sobre o que ia acontecer. Errei o dress code. Todos e todas estavam vestidinhos com suas melhores roupas sociais e eu vestido de jeans, um tênis velho e uma camiseta de malha surrada.
Esse banco, o mais importante do Brasil, quiçá da América Latina na época, estava então promovendo naquela praça um o processo seletivo para os Departamentos de Câmbio e Comércio Exterior. Essas vagas eram muito disputadas porque não havia muitos desses departamentos no Brasil. Somente em praças exportadoras como a cidade onde eu vivia. Conseguir entrar nele para quem estava na minha área era uma porta de entrada dourada para o mercado financeiro, o sonho de 10 em cada 10 alunos de economia nos fins dos anos 1990.
Participei do processo seletivo. Como sou competitivo e percebi do que se tratava, mais pela competição e com quem estava competindo e menos até pela vaga, fiz a prova usando toda a minha capacidade. Nada menos. Terminei a prova e fui para casa. Não falei com ninguém a respeito do assunto.
Duas semanas depois, a minha avó ligou para a casa da minha vizinha para me dar um recado. Na casa do meu pai não tinha telefone. Era urgente. E eu não tinha ideia do que se tratava. Como eu demorei a responder ela e meu tio foram me buscar em minha casa, morávamos relativamente perto, já que a pessoa que havia me ligado disse que retornaria em meia hora a ligação. O medo da minha avó é que eu tivesse arrumado algum problema com o banco, me endividado, ou alguma coisa da natureza. Eu achei graça e a tranquilizei de que não tinha nada com o banco. Fui até sua casa e esperei pela ligação.
O telefono tocou, eu atendi e a pessoa do outro lado da linha disse: Oi, tudo bem? Aqui é o subgerente do departamento de câmbio. Estou te ligando para falar sobre o processo seletivo.
Eu por um momento me esqueci do que se tratava e fiquei confuso. Ele percebendo isso, falou: Você foi aprovado no processo. Preciso que você venha ao banco para trazer a sua documentação.
Eu ainda confuso, falei: Documentação? Ele, já meio impaciente: Sim! Seus documentos, carteira de trabalho, RG, CPF etc. Você vai ser admitido amanhã.
Foi aí que eu entendi de verdade que havia passado na prova e que tinha entrado no Banco.
No dia seguinte eu estava lá. Fui admitido. Comecei a trabalhar. Logo fui promovido e promovido. Essa parte da vida tinha se resolvido. Agora eu já poderia ter a minha companheira e minha filha juntas de mim e começar de verdade essa fase da minha vida de forma digna.
Fiquei por lá seis anos e foi uma experiência fundante na minha vida que me preparou para a profissão amo e que mantenho até hoje.
E quanto à prova da Universidade? Tirei zero. Mas segui frequentando as aulas. Primeiro por orgulho, depois porque gostava da matéria e em terceiro porque era um pré-requisito importante na grade curricular do curso. Me empenhei. Estudei. Fiz a outra prova parcial, tirei boa nota. Finalmente fui para a prova final. Fiz a prova final. Fiz boa prova e sabia que seria aprovado.
No momento que entreguei a prova ao professor ele me perguntou: E aí? Conseguiu o emprego?
Eu respondi: Sim, consegui.
Ele: Parabéns! Então você tomou a decisão correta, não é?
Eu respondi: Sim, foi a decisão correta.
Ele continuou: Fico feliz. Olha, como vi seu esforço e como não desistiu do curso, vou substituir a nota dessa prova final, pela segunda parcial, para não prejudicar o seu coeficiente acadêmico ok?
Eu, meio sem entender, perguntei sem malícia: Mas pode fazer isso?
Ele: Tecnicamente não, mas vou conversar com o centro acadêmico sobre o seu caso. Vão concordar.
Eu agradeci meio sem acreditar e fui saindo quando ele me disse: Sabe, a vida é assim cheias de escolhas, muitas delas duras e difíceis, mas quando você tem coragem de tomar as decisões corretas, o caminho se abre diante de você.
Ao Fernando, fica minha eterna gratidão por ter sido o vetor que me levou a esse ponto de inflexão na minha vida.
Ao professor, que não revelo o nome, por ser hoje pessoa pública, fica também a minha eterna gratidão por ter me ensinado uma das lições mais importantes da minha vida.
Ao banco minha eterna gratidão por ter sido uma grande escola não só profissional, mas de vida também.
Ps.: Esses são fatos verídicos que se passaram em outubro de 1997.