O Alfarrabista

O Alfarrabista

O DILEMA DO ALFARRABISTA

Um alfarrabista seria, por definição, uma pessoa interessada por livros antigos, empoeirados, esquecidos e até mesmo um comerciante deles. Portanto, um alfarrabista que se preze costuma ter seus olhos mais voltados para o passado que para o presente.

Normalmente seus melhores amigos, ou na pior das hipóteses, interlocutores, são homens de outros tempos, de outros mundos, que falavam, pensavam e escreviam em línguas ou escritas que ninguém mais fala ou entende. Homens mortos. Um bom alfarrabista não pode ter medo dos mortos, antes se sente à vontade com eles.

Isso torna o alfarrabista, aos olhos alheios, um sujeito estranho, tal qual um necromante ou como um ajuntador de papeis velhos, entusiasta de ambientes empoeirados e escuros, aficionado por cheiro de papel e mofo. Um sujeito que ensimesmado em seu diletantismo quase antiquário que coleciona “anacronismos” e busca deliberadamente se apartar da “vida real”.

Conheço poucos alfarrabistas. Isso pode ser explicado porque o verdadeiro deleite de um membro dessa casta deva ser o isolamento em meio a seus tesouros de papel amarelado e embolorado que ninguém mais além entende ou se importa. Presume-se, e explica-se por isso o pouco intercâmbio com os demais seres humanos, não vocacionados, com os quais se vê contrariado a compartilhar a contemporaneidade.

Assim, como um guardião de tesouros, o alfarrabista costuma não querer dividir o que tem e o que sabe. Não deixa de ser um egoísta – Egoísmo talvez seja demais – Um alfarrabista, é na verdade, um indivíduo é zeloso (ciumento mesmo!), desconfiado.

Sabe que a maioria dos mortais vivos sequer entendem o valor de sua vocação e, portanto, jamais vai entender o seu chamado. Se sempre foi assim, imagine o que se passa nos dias de hoje, onde tudo tem prazo de validade, um “para quê”, um “porquê” que é superado liquidamente por um novo modelo, uma nova edição ou qualquer outra novidade, que nunca falta, que nunca tarda.

Enquanto isso, o alfarrabista é avesso a “novidades”. É avesso à liquidez do tempo e das coisas, dado que é, por definição, mais apegado ao permanente que ao efêmero.

Mas aqui se impõe o paradoxo – E como a vida é paradoxal!

Apesar de ter a alma e o coração, intrinsecamente ligados ao passado e de ter, como já mencionei, seus amigos e interlocutores mais caros entre homens mortos, vez por outra – muito mais do que gostaria – o alfarrabista, visto que está vivo, está fadado a fazer incursões na vida do seu tempo e, olhando ao redor, constata estupefato que, se o formato das coisas mudam completamente em velocidade exponencial, o seu conteúdo continua o mesmo, o que o faz lembrar fatalmente daquela máxima de um outro grande alfarrabista (talvez o maior de todos) segundo o qual “Não há nada novo sob o sol”.

Então, de repente, nada mais que de repente, muito a contragosto, em uma sinestésica profanação do espaço-tempo, do tempo e do espaço, o alfarrabista se vê arrastado da ágora de seu gabinete escuro, entulhado e empoeirado para a esfera pública virtuo-real, tragado do passado para o presente, por um buraco de minhoca e se vê tratando dos assuntos “banais” do hoje, perplexo por encontrar nada mais do que interessantes novidades velhas em tudo o que observa.

Eis o dilema e a sina do alfarrabista nesses tempos “pós-modernos”, o passado que insiste em penetrar e satirizar o presente, que ruborizado insiste em escamoteadamente repetir o passado.

Eis e então aqui, com o que eu, um pobre pretendente a herdeiro dessa tradição, me deparo.

E não sei, se olho para o presente ou se fico com o passado…

(Em 16/02/2017)

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